27 abril 2011

Noturna

Debruçou-se sobre o cálice de vinho
que tinto escorreu pelo seu corpo
Cada curva circundava suas veias
Pulso a pulso titubeava verdades perfeitas
Olhava pela fresta com o verde que ensaiava tenso
Nua, se vestia com o meu abraço lento
Num choro quieto, sorriu entre feridas
Perguntou meu signo, falou de arte e contou como levava a vida
Seu olhar vagueava pela sinfonia estreita
Meu corpo permanecia fechado a ideias mal feitas
Seu deslumbre
um papo
o lençol manchado
Cada viagem interna era um assunto calado
A noite percorreu cegando
À lua, o sono veio germinar o acalanto
Deitou-se no meu colo sem pensar em mais nada
Adormecida, eu a deixei ali, sobre aquela cama molhada

'Noturna' | nanquim sobre papel reciclado + sobreposição e pintura digital | texto 2011 | ilustração 2011

Ouça 'Noturna' aqui:



14 abril 2011

Amarílis

{ à estátua colorida
  que há cem anos dormia
  e acordou sem sua cor }

'oh, que susto!', ela pensou
despertou em preto e branco
desolada, estava aos prantos
e bem baixinho sussurrou
'encontrarei o malfeitor...'

desbotaram-lhe as bochechas
a pintura dos seus olhos
e o batom cor de cereja

já não tinha qualquer viço
e nem as flores no cabelo
sumiu-lhe até o brinco!
chorava, chorava...

quem roubou seu arco-íris
ó, estátua tão bonita
minha doce amarílis?

procurou pelas estrelas
nos brinquedos, guloseimas
no oceano, nas gavetas
até nos potes de aquarela
e nada de achar as cores dela

foi até num picadeiro
na arena viu de tudo
malabares, bailarinas
e um palhaço bem matuto

encheu-se de esperança
e ao encontro do mágico
perguntou sem relutância
'há cores dentro da sua cartola?'
ele debochou e nem deu bola

desgostosa e descontente, parou na livraria
perguntou para a atendente
'aqui vende livros, não vende?'
a moça logo notou sua triste fisionomia

folheou livro por livro
admirou cada desenho
se encantou com o colorido
esfregou na sua pele
mas não teve desempenho

cansada de ziguezague
refastelou-se sob uma árvore
avistou um fotógrafo inerte
curiosa, deu-lhe boa tarde

ele sorriu desajeitado
ela achou graça do seu jeito
mas não hesitou em tirar proveito
'moço, você me tira um retrato?'

e no clique do obturador
ela imaginou de volta a sua cor
mas ao ver sua fotografia
foi-se qualquer resquício de alegria

olhou bem o pedaço de papel
passarinhos amarelos, outros cor de mel
rosas e violetas esparramadas pelo chão
mas as cores da coitada, ali não estavam não

exausta, continuou sua andança
chegou a uma casinha bem modesta
ficou feliz que nem criança
'ah, um aconchego no meio da floresta!'

entrou sem nenhuma cerimônia
deparou-se com um homem sério
maltrapilho, bigodudo e usava boina
ele achou a invasão um baita despautério!

ela contou sua história
ele achou tudo muito estranho
mas dos seus olhos castanhos
uma lágrima caiu quase simplória

ofereceu-lhe o seu ofício
'sou pintor, olha pra isso!'
mostrou-lhe um arsenal de tintas
ela riu, riu, riu...
como sempre estava linda
(mesmo assim, descolorida)

pediu ao pintor as cores da sua paleta
'por favor, começa pintando a minha cabeça?'

e o artista pincelou sua bochecha
devolveu à sua boca a cor de cereja
fez o brilho do cabelo reaparecer
pintou os seus olhos coloridos
tão astuto, refez até seu brinco
pois moldava muito bem o papel machê

assim, o malfeitor era só uma lembrança
ela passou a achar besta aquela ideia de vingança
voltou para onde sempre viveu
subiu em seu pedestal, lá naquele antigo museu

então cercou-se de mil cores latentes
vestiu as suas roupas prediletas
e foi visitada por muita gente importante
dentre tantos, o mágico, o pintor e o poeta
viveu ali para todo o sempre
bem mais bonita do que antes

'Amarílis' | fotografia (Fernando Bernardes) + colagem digital | texto 2011

Ouça 'Amarílis' aqui:


04 abril 2011

Dentro


aflora intensidade à tua imagem
o dia que demora
as horas passam sem alarde
*
no meu rosto brota o medo
que te deixa bem à vontade
*
   talvez amor, quiçá além?
   crio...
   pode ser só ilusão
*
esqueço o resto
nada mais importa
a imaginação me bolina certeira
meu rumo segue torpe
*
escrevo como louca
desalinhada e desobediente
   rasgo...
   é tudo mentira!
junto os meus cacos sem métrica
colo, pois tu me desmentes
*
rebobino a fita
procuro o instante que o teu sorriso me abriu
releio cada palavra restrita
e descubro: tudo me intimida
*
   tanta troca...
   quanta rima...
   santo riso...
   me tirastes o juízo!
*
meu olhar te encontra em transversal
nosso encontro nunca foi casual
*
coração descompassado
disritmia
... eu sufoco em teu abraço...
*
nós dois aqui calados
meu corpo
teu corpo
me estendo ao teu lado
*
   a brisa brejeira...
   o cheiro do mato...
   o aconchego no peito...
   um acalanto acanhado...
*
escorre dos lábios o anseio
minha boca saliva
   eu jamais te terei por inteiro
*
me afogo na teimosia da lágrima egoísta
quero que esqueças tudo o que te foge à vista
*
não temo mais nada
   quase nada
circundo tua retidão segura e desarmada
meu delírio te maltrata
tua lucidez nunca fez qualquer sentido
assume o perigo de ter-me contigo
   tens noção do prejuízo que me cabe ao te amar?
*
repara bem na minha órbita
não, não estou a passeio
quero deslizar a teu cuidado
com meus olhos breves que te delineiam
*
acendo a faísca do mau palpite
o peso do silêncio nos constrange
dentro mora o pecado que ainda não viste
*
vais me descobrindo em partes
não plasmo metades
creio nas vontades que imantam
e no inteiro que me arde
*
calo a minha reza refastelada na vertigem
nosso laço não desata
queimo...
meu calor vira fuligem
*
   o céu pincelado na janela
   meus olhos ofuscam a luz das estrelas
   flutuo nos versos que escrevo
   apago alguns
   visto a minha vida verdadeira
*
   vem, levanta!
   vem sentir o vento...
   passeia comigo na nuvem que dança
   aproveita enquanto há tempo
teu olhar foge
sinto-me livre em teu pensamento
*
acendes um cigarro
e a fumaça sobe densa
olhas através do meu reflexo
sentes-te sozinho
refletes, indagas, indignas-te:
- onde o nosso sonho perdeu o seu caminho?
*
atravesso o espelho
quero ver o que vês em mim
risco o meu corpo inteiro
   dos pés a ponta do cabelo
e no meu avesso está teu estopim
*

'Dentro' | fotografia (Fernando Bernardes) + montagem + ilustração | texto 2002 reeditado em 2011 (revisão Mirra Moraes)

Ouça 'Dentro' aqui:

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